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O Consultor

Nenhum subgênero tem crescido mais em Hollywood do que a sátira do conflito de classes. Encarnado pela frase “eat the rich” (“coma os ricos”, em tradução literal), o filão é representado por hits de crítica e público como ParasitaThe White LotusThe DropoutThe HumansO Menu e Triângulo da Tristeza – produções, enfim, que olham para a estrutura absurdamente desigual da sociedade capitalista e tiram prazer catártico do ato de destroçá-la, ou ao menos zombar daqueles que estão no topo dela. O Consultor tinha tudo para ser só mais uma entrada nesse nicho que aos poucos vai se desgastando, até pela falta de coisas originais a dizer… mas o roteirista Tony Basgallop tinha outros planos.

Adaptando um livro de 2016 do elusivo autor de horror Bentley Little, o cocriador de Servant parece reconhecer a saturação do “eat the rich” e procurar obstinadamente pelo próximo passo dessa narrativa comum que tem se desenvolvido na cultura pop. O que ele encontra é, previsivelmente, um oceano de ambiguidades escondido por trás dos absolutos que predicam a sátira. A tempo: a ideia de O Consultor não é argumentar que os ricos merecem nossa piedade, mas sim mostrar que, quando estamos todos presos há tanto tempo dentro de um sistema que nos deixa impotentes para transformá-lo, o que nos resta senão jogar pelas regras dele da melhor maneira que podemos?

Este é basicamente o dilema encarado por Elaine (Brittany O’Grady) e Craig (Nat Wolff) quando o chefe do estúdio de games onde ambos trabalham é brutalmente assassinado. Na mesma noite do ocorrido, o misterioso Regus Patoff (Christoph Waltz) chega ao escritório com um contrato assinado pelo falecido CEO, se declarando o responsável por conduzir a empresa neste momento de crise e direcioná-la para um futuro lucrativo. Impiedoso ao ponto da perversidade em suas estratégias de gerenciamento, Patoff não demora para colocar a empresa, e a vida dos dois protagonistas, de cabeça para baixo.

Basgallop, que escreve sozinho os oito episódios dessa primeira temporada, permite que a sensação opressiva de um ambiente de trabalho controlado na base do medo se infiltre aos poucos pela série. O Consultor entende que o mundo corporativo pautado por regras de competição selvagem, até por fazer parte do dia-a-dia dos funcionários (quanto menos tempo fora do escritório, melhor!), promove uma degradação progressiva das regras de civilidade e dos limites do absurdo, eventualmente até dissolvendo a noção de um mundo fora daquela lógica mate-ou-morra-e-às-vezes-faça-os-dois proposta pelo chefe. O ser humano se acostuma com cada coisa, não é mesmo?

É justamente essa maleabilidade que o roteirista confronta nos episódios finais, desenhando arcos opostos para Elaine e Craig, um se aproximando da cumplicidade com Patoff enquanto o outro se coloca em rota de colisão com ele. O Consultor, no entanto, não se rende a caracterizações fáceis de heroísmo e vilania, se aproveitando inclusive da ambivalência natural que Christoph Waltz deposita em suas performances – nas mãos do homem que fez de Hans Landa (de Bastardos Inglórios) um dos vilões mais compulsivamente assistíveis da história do cinema, a crueldade de Patoff é muito mais ordinária, quase protocolar, do que é revoltante.

Com um sorriso sempre no rosto, e o timing perfeito de suas respostas curtas e grossas às presunções de gentileza que os outros personagens por vezes, inocentemente, fazem dele, o “vilão” de O Consultor é um agente do sistema, e não uma anomalia dentro dele. Sua franqueza é quase refrescante, despindo-se das pretensões benfeitoras da linguagem corporativa e expondo a incongruência fundamental entre os interesses empresariais e a própria sobrevivência humana. Acontece que somos todos engrenagens desse sistema, e não há qualquer saída dele à vista, então que escolha temos a não ser abraçá-lo, aprender a entendê-lo como belo através de alguma ginástica retórica?

Até para não sobrecarregar uma narrativa que faz um trabalho de elaboração cultural tão intenso, O Consultor não ousa na forma: os capítulos ágeis de meia hora são dirigidos de forma precisa e sofisticada, mas nada audaciosa, por nomes como Karyn Kusama (Yellowjackets), Daniel Attias (The Wire) e Matt Shakman (Game of Thrones). São diretores competentes, escolhidos a dedo em meio ao ambiente da prestige TV, tanto a fim de encaixar a série em um padrão estético que vá atrair o espectador acostumado com essa dieta cultural quanto a fim de mantê-lo assistindo, fascinado por um mistério que, no fim das contas, não é o que realmente importa na história.

A solução do plot de O Consultor não é elaborada ou surpreendente, mas a série é bem-sucedida em transcender aquela satisfação cármica passageira que Hollywood anda fornecendo em suas sátiras capitalistas, para um público cada vez mais anestesiado. Ao invés disso, o que ela faz é muito mais perturbador, e muito mais interessante: uma poetização daquele abraço resignado a que todos nós somos obrigados a recorrer quando lidando com um sistema inescapável que pode nos matar a qualquer momento – e que, de fato, está nos matando aos poucos o tempo todo.

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